Relações UE-MERCOSUL: entre a centralidade da transição energética e as considerações geoestratégicas
- Amalia Stuhldreher
- há 2 dias
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Tendo transcorrido o primeiro quarto do século XXI, o sistema internacional atravessa uma etapa convulsa, marcada pela disputa hegemônica entre Estados Unidos e China, assim como por crescentes tensões entre diferentes atores, onde convergem crises econômicas, energéticas, ambientais e geopolíticas. Para caracterizar o momento, surgem denominações que sublinham, por um lado, os desafios específicos do período, ao mesmo tempo em que se faz alusão a traços coincidentes com outras etapas históricas. Retomam-se assim conceitos como “policrise” – introduzido por Edgar Morin em 1993. Também o termo “permacrise”, que se converteu na palavra do ano de 2022 do Dicionário Collins, faz referência a uma situação de crise permanente, na qual os problemas sociais, econômicos, políticos e ambientais se agravam e se retroalimentam, gerando um cenário de incerteza e risco. Conceitualizações como as de “interregno” – recuperada por José Antonio Sanahuja (2020) – abordam desafios do presente aludindo a outras etapas históricas e sublinham a instabilidade sistêmica e a erosão dos consensos vigentes em décadas anteriores. Ademais, o recrudescimento dos conflitos – particularmente na Ucrânia e em Gaza –, com a forte reintrodução da geopolítica e da geoeconomia – incluída a “instrumentalização do comércio” (weaponization, en inglés) – determina a emergência de noções como “Síndrome de 1933”, cunhada por Siegmund Ginzberg (2024).
Este panorama é indicativo não só de uma acumulação de crises, mas sugere antes uma mudança de época, na qual se redefinem as margens de ação dos Estados e das organizações regionais, afetando as possibilidades da governança multinível em diferentes áreas.
Nesse contexto, a transição energética torna-se um eixo articulador entre economia, geopolítica e sustentabilidade ambiental: as dinâmicas esboçadas anteriormente repercutem na questão central da energia, impondo desafios específicos de concertação e articulação para enfrentar a crise climática, afetando as possibilidades de impulsionar respostas efetivas. Em termos de compromissos, o G20 acordou na Índia, em setembro de 2023, triplicar a potência mundial de energias renováveis até 2030, passando dos mais de 3.500 gigawatts (GW) instalados atualmente para cerca de 11.000 GW, para manter a meta de limitar a 1,5 grau o aquecimento global, segundo o Acordo de Paris. No entanto, não se trata unicamente de substituir fontes fósseis por energias limpas, mas de um processo que reconfigura as relações de poder e as cadeias globais de valor.
Para a União Europeia (UE), a transição energética cumpre uma dupla função: constitui uma meta interna de descarbonização e representa, ao mesmo tempo, um instrumento de política externa. Especialmente após a invasão da Ucrânia pela Rússia, pode-se perceber uma reorientação da diplomacia comunitária europeia e de suas políticas energéticas e climáticas, desde uma abordagem de corte normativo-axiológico para outra mais fortemente permeada por questões de segurança.
Por sua vez, para a América Latina e o Caribe (ALC), um aspecto central de seus vínculos com a Europa foi historicamente o fato de que a UE apresentava à região uma agenda relativamente mais diversa em comparação com a de outros atores externos. No marco dos novos acordos de associação, a transição verde é um tema destacado.
Na ALC, a polarização político-ideológica marcou fortemente as últimas décadas. Somam-se as crises econômicas que atingiram sucessivamente a região, sua vulnerabilidade diante dos impactos externos, sua dependência da exportação de matérias-primas e a pressão sobre os recursos naturais, dentro de um panorama atual de “regionalismo líquido”, caracterizado por Karina Pasquariello, Regiane Bressan e Bruno Theodoro Luciano (2023).
Com esse pano de fundo, apesar das dificuldades para estabelecer padrões comuns e políticas homogêneas, dadas as diferenças entre seus membros (tamanho, população, peso econômico e níveis de desenvolvimento), o MERCOSUL constitui uma organização com um grau significativo de consolidação. A evolução do bloco permite visualizar um processo ziguezagueante de desenvolvimento institucional-normativo que buscou promover energias “limpas”. Acordos no âmbito do MERCOSUL poderiam ser relevantes para estabelecer diretrizes compartilhadas e esquemas de governança, que pudessem derivar eventualmente em uma comunidade energética. Ao mesmo tempo, o bloco também aparece como um parceiro relevante para a UE por sua dotação de recursos naturais, incluindo alguns minerais críticos para a transição energética.
Atualmente, essa transição evolui rumo à descarbonização dos setores onde a redução ou “abatimento” das emissões de gases de efeito estufa (GEE) é difícil, como é o caso do transporte. Assim, tem ganhado importância a discussão da economia do hidrogênio, com os desafios próprios das formas que sua promoção assume nos países do Sul Global. Em paralelo a iniciativas de cooperação como o Pacto Verde Europeu e a Global Gateway da UE, também surgem enfoques críticos a uma perspectiva desenvolvimentista que poderia acarretar riscos de financeirização, dependência tecnológica e limitada captura de benefícios para os países do Sul Global.
Propostas como a iniciativa Global Gateway incidem no surgimento de projetos de investimentos que têm entre suas prioridades, por exemplo, a produção de hidrogênio verde e metanol, gerando impactos sobre a ação e a política externa dos países integrantes do MERCOSUL, com implicações para o desenvolvimento de seus territórios.
As relações UE–MERCOSUL, diante da possibilidade de concretização do acordo marco de associação e livre comércio, detêm potencial para gerar um espaço comum de diálogo de políticas, de convergência regulatória e de transformação produtiva: em conexão fluida com iniciativas como a Global Gateway, poderia aprofundar-se a capacidade de concertação regional e inter-regional, contribuindo para o cumprimento de objetivos globais de descarbonização. No marco da transição verde, abrem-se oportunidades para a criação de cadeias de valor regionais e nacionais, com repercussões em matéria de inovação, desenvolvimento local, emprego de qualidade e exportação de produtos como o hidrogênio verde e seus derivados. Embora existam riscos de exacerbação da concorrência entre os países do bloco sul-americano, também se abre espaço para convergências regulatórias em torno de certificações como as da CertHILAC, uma iniciativa da OLADE (Organização Latino-Americana de Energia) que visa à homologação de certificações de produção de hidrogênio “limpo” que abrange a ALC, com exceção do Brasil.
Atualmente, a relação UE–MERCOSUL encontra-se em um ponto de inflexão: a Europa busca parceiros confiáveis para sua transição verde, e a América Latina deveria reposicionar-se contando com seus recursos naturais e ativos energéticos. Ambos os parceiros deveriam valorizar a oportunidade para uma aposta birregional que procure superar padrões de relacionamento assimétricos, promovendo uma associação fundada em vínculos de reciprocidade.

Amalia Stuhldreher é licenciada em Relações Internacionais pela Universidade do Salvador e doutora em Ciência Política pela Universidade de Mainz. É Professora Associada em regime de dedicação exclusiva no Instituto de Desenvolvimento Sustentável, Inovação e Inclusão Social (IDIIS) da Universidade da República (UDELAR) em Tacuarembó, e membro ativo do Sistema Nacional de Pesquisadores (SNI) do Uruguai. Seu trabalho, baseado na governança multinível, analisa a integração latino-americana e temas globais como mudança climática, energias renováveis e bioeconomia, com foco em suas implicações para o desenvolvimento territorial sustentável.
As opiniões expressas neste blog são exclusivamente do autor e não refletem as opiniões da Rede EULAS.



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